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Opinião pública: Quem fala em nome do povo?

 


Em janeiro de 1918, António Sérgio publicava pela primeira vez o seu ensaio Opinião e Competência em Democracia, onde demonstrava a importância vital da opinião pública para a Democracia. Nas palavras do autor, “o ideal da Democracia (política), em suma, é o governo da nação por elites naturais, criadoras da opinião pública e executantes da opinião pública: o governo da persuasão pelo escol da inteligência”. Se aceitarmos esta definição e reconhecermos o papel fundamental da opinião pública para a nossa sociedade, não deveríamos ser mais exigentes com aqueles que a moldam?

Sim. Porque se a existência de uma opinião pública inteligente, independente, consciente e organizada é condição primordial para a existência da Democracia, então devemos perguntar-nos se esta existe mesmo em Portugal? Sérgio já então lamentava a sua ausência. Um século depois, o vazio persiste, mesmo que mascarado pelo véu do falso pluralismo, protagonizado pelos ventrículos do poder económico nos palcos mediáticos, cuja propriedade pertence aos grandes conglomerados de comunicação.

Uma questão impõe-se: atualmente, quem são os criadores de opinião pública? Ora, numa democracia política, sem democracia económica e social, os moldadores de opinião emergem quase exclusivamente das elites económicas, donde também são provenientes os executantes da opinião pública. Daqui resulta um óbvio conflito de interesses, se quem é responsável por fiscalizar pertence à mesma classe social privilegiada daquele que é responsável por executar, não é de esperar, a menos que sejamos muito ingénuos, que haja uma independência entre estas duas funções essenciais para a Democracia. No fundo, forma-se uma arquitetura que lembra uma tragédia grega: o fiscal torna-se cúmplice, o crítico converte-se em arauto do status quo e a democracia autodestroi-se pelos seus supostos guardiões.

Colocando de parte a origem social dos criadores da opinião pública portuguesa, devemos equacionar uma questão mais profunda: terão eles a qualidade que tal crucial papel exige? Possuirão a capacidade intelectual e coragem de questionar o status quo? Terão a empatia de se colocarem no lugar do povo e desafiar o pensamento ideológico da classe dominante? A resposta é desoladora. Desde as colunas de opinião aos programas televisivos, os comentadores políticos caracterizam-se pela mediocridade, pela banalidade intelectual, pela simples repetição de slogans vazios e lugares-comuns, como “reformas estruturais” ou “dinamizar a economia”, pela defesa da manutenção das estruturas de opressão que exploram as classes populares (como a precarização laboral ou a regressividade do sistema fiscal). Enfim, são guardiões dos privilégios da classe a que servem.

Perante esta situação, restam-nos dois caminhos: aceitar covardemente esta triste realidade ou lutar para transformá-la. Para um socialista, a luta é sempre a resposta certa contra a adversidade. Portanto, urge congregar as forças progressistas para repensar as plataformas de comunicação e criação de opinião pública, procurando construir novas ágoras, através de plataformas cooperativas, médias comunitários, aposta nas novas formas de comunicação digital e, sobretudo, de uma maior cooperação entre os projetos já existentes. Só assim, retirando o microfone das mãos dos fabricantes de consenso, poderá surgir uma nova geração de intelectuais, enraizados nas bases populares, que se tornarão os criadores de opinião pública idealizados por Sérgio, farol de uma democracia social viva.


Abel Costa
Licenciado em Economia, militante da JS

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