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O “algoritmo P” e o caso Felca: a adultização nas redes sociais

 
No dia 7 de agosto deste ano, o criador de conteúdos brasileiro Felipe Breassamin Pereira, mais conhecido como Felca, publicou um vídeo de 50 minutos no YouTube que chocou a Internet. Nele, denunciou a exploração de menores constante que acontece debaixo dos nossos narizes todos os dias nas redes sociais. A publicação, de carácter sensível e, no mínimo, angustiante, acumulou 49,5 milhões de visualizações em apenas três semanas.

Apesar de tudo o que escrevo aqui, nada substituirá a visualização do vídeo, que pode ser encontrado no canal de YouTube do Felca e que recomendo a todos, especialmente aos pais e/ou aos responsáveis por menores. Grande parte dele gira em torno do caso específico de Hytalo Santos, um dos mais chocantes no momento, mas, infelizmente, não o único. Do grupo organizado por Hytalo fazem parte vários menores de idade, tanto rapazes como raparigas, que são constantemente gravados, expostos e publicados nas redes sociais nos mais variados contextos: desde menores na mesma cama, onde H. Santos, de 27 anos, lhes tira o cobertor enquanto dormem, com o objetivo de mostrar a pouca roupa que ambos utilizam, a uma menor de idade sujeita a procedimentos cirúrgicos para aumentar os seios, gravada logo após a cirurgia, ainda sem completa consciência do que está a acontecer.

Além deste caso (o artigo da SIC Notícias sobre o tema explica, de forma muito breve, os casos específicos a que o youtuber fez referência), Felipe denuncia o próprio algoritmo vicioso e nojento das redes sociais – e não estamos a falar de redes da dark web, mas sim, por exemplo, do próprio Instagram, da Meta, a empresa de Mark Zuckerberg que gere a maioria das redes sociais que utilizamos (como o Facebook e o WhatsApp). Tudo isto surge ligado à pedofilia e à “adultização”. Esta última refere-se à exposição precoce de crianças a comportamentos, responsabilidades e exigências incompatíveis com a sua idade e que deveriam ser reservados aos adultos (SICN/Fundação Abrinq). E, atualmente, é um fenómeno cada vez mais comum e normalizado.

Na publicação, vemos excertos de podcasts onde crianças, de aparentemente seis a dezasseis anos, falam sobre o “empreendedorismo” que gente como elas têm a capacidade de alcançar e usar para gerar lucros, se simplesmente assim o quiserem. Chegam a afirmar que não ter telemóvel, não ter casa ou condições financeiras não são um obstáculo para ganharem milhares de reais por dia. Um dos menores, de aparentes seis anos, chega a contar a história de como ganhou seis mil reais num só dia, e de como descobriu, na igreja, que fez dois mil R$ em cinquenta minutos. Esse mesmo rapaz, que não deve ser culpado pela educação que recebeu, chega a ridicularizar, bem como os restantes que o “entrevistam”, o próprio intuito de ir à escola. Afirmam que o ensino secundário é um entrave ao sucesso económico e que ter conhecimentos, por exemplo, de Filosofia, não é de todo útil no dia a dia: “Para que é que preciso de saber quem é o Aristóteles? Se me entrar um ladrão em casa vou dizer-lhe algo que Aristóteles disse? E para que é que seria médico? O paciente vai morrer com cancro e vou começar a falar de raízes quadradas?” – esta é a mentalidade de uma criança que ainda nem atingiu os dois dígitos de idade. Uma mentalidade que se opõe ao conhecimento e o vê como insignificante, tendo como objetivo principal o lucro na Internet e a falsa ideia de “empreendedorismo” que lhe venderam. Uma autêntica criança, num podcast, a falar de empreendedorismo e a desprezar o trabalho e o estudo dos profissionais de saúde e das áreas de letras na sociedade. Uma criança que, se não tivesse a educação que tem, a exposição e acesso a conteúdos desse género online que tem e o “palco e microfone” que lhe dão, não teria a mesma opinião. E, como esta, há imensas – imensas crianças que cada vez mais se apressam para desempenhar cargos de adultos, que relativizam e menosprezam o conhecimento, a escola, os valores morais e os moldes da sociedade: crianças de uma geração que tende constantemente a tornar-se mais egoísta, centrada em si mesma e insustentável a longo prazo.

Infelizmente, em Portugal, há também imensos casos do género. Apesar de não necessariamente girarem em torno das falsas ideias de empreendedorismo (porém, existirem), centram-se também na própria aparência e personalidade: cada vez mais alunos dos 2º e 3º ciclos se preocupam com o seu visual e tentam fazê-lo assemelhar-se ao de um adulto, com roupas formais, quilos de maquilhagem, saltos altos, piercings, cirurgias estéticas, preenchimentos labiais e, principalmente, exposição online, onde tentam parecer mais velhos a nível estético e de comportamento. Além disso, temos ainda aqueles que nada mais são que crianças que, na sua inocência, fazem o que os seus pais lhes dizem (como gravar vídeos para as redes sociais) e acabam publicados na Internet, sem ter conhecimento dos riscos associados. Riscos esses que são, precisamente, um dos principais motivos para ser atribuída a responsabilidade legal de um menor a um adulto que, supostamente, deveria estar a par dos perigos e tomar as decisões que achasse necessárias e benéficas para o bem-estar da criança.

Vamos à prática: ainda no mesmo vídeo, Felca criou uma conta no Instagram do zero, com o algoritmo totalmente novo e por estrear. A primeira coisa que fez foi, propositadamente, pesquisar termos como “cute girl” e semelhantes e interagir com as publicações mais sugestivas (meninas de cinco/seis anos na praia, a tomar banho, em aulas de ginástica, etc.). Depois, simplesmente abriu a secção de vídeos curtos do Instagram (os Reels, basicamente idênticos ao TikTok), onde, instantaneamente, surgiram vídeos com o mesmo foco: meninas menores de idade com pouca roupa ou em poses sugestivas em vídeos onde a maioria não tinha essa intenção – a intenção de serem sexualizadas –, até porque, na grande maioria dos casos, quem publica os vídeos são os próprios pais das crianças, crianças estas que não têm a capacidade de discernimento para saberem a que se estão a sujeitar.

A parte mais obscura esconde-se (a céu bem aberto) nos comentários destas publicações. São dezenas, centenas e muitas vezes milhares de comentários por parte de perfis falsos de adultos (a maioria homens) que escrevem emojis de corações, expressões sugestivas e, frequentemente, com os termos “trade Telegram” e “link in bio”. Estes comentários são a forma de este grupo repugnante da sociedade comunicarem e anunciarem entre si que, no seu perfil, podem encontrar links para grupos na app Telegram onde trocam conteúdos de carácter pornográfico infantil. Como supracitado, mais perturbador do que ler este artigo é mesmo ver o vídeo onde o youtuber prova, num perfil criado em um minuto, o quão fácil foi ter acesso a links onde poderia encontrar pornografia infantil.

Ideologias partidárias à parte, é evidente a urgência da tomada de medidas acerca deste tema. Já são vários os países onde se debate a possibilidade de proibir o acesso às redes sociais por parte de menores até uma certa faixa etária, e alguns já chegaram mesmo a implementá-lo. Em Portugal, contámos com o anúncio do atual governo acerca da proibição do uso de smartphones nas escolas até ao 3º ciclo. Além de também constituir um grande problema nas capacidades de socialização dos alunos, considero que o maior flagelo está mesmo na educação que estes recebem em casa. Não adianta proibir o uso de telemóvel na escola se o aluno menor chega a casa e é usado como conteúdo pelos pais, com ou sem noção do que fazem. Não adianta proibir o uso de telemóvel na escola se o aluno passa o seu tempo livre em casa a consumir conteúdo onde vê crianças da sua idade a lutar pela imagem e hábitos forçadamente de adulto supracitados. A base de toda a personalidade e mentalidade da criança parte do local e daqueles que considera serem o modelo a seguir: os seus pais ou responsáveis legais.

É urgente obrigar as grandes companhias tecnológicas a limitar a publicação de conteúdos de menores de idade nas redes sociais, bem como identificar os predadores nas caixas de comentários, por exemplo, e penalizá-los. É impensável que, na era da Inteligência Artificial, não haja uma ferramenta eficaz que identifique estes conteúdos e comentários e os elimine e penalize, respetivamente. Caso o problema não seja resolvido, é preciso tomar ação pelas próprias mãos. Há uma coisa que Portugal tem e o Brasil não: somos parte da União Europeia. Gastamos milhares e milhares de euros em soluções de proteção às nossas crianças, mas vemos este assunto continuar nas bocas do mundo por maus motivos. É preciso pressionar os órgãos responsáveis a tomar medidas e regular, de uma vez por todas, de forma eficaz, o mundo online, que é visto pela maioria como um planeta sem regras.

Por fim, partilho alguns links relevantes acerca deste tema onde o silêncio, enquanto damos diariamente dinheiro através da monetização aos criadores de conteúdos e às plataformas que os promovem, é cumplicidade.

Vídeo Felca (YouTube): https://www.youtube.com/watch?v=FpsCzFGL1LE

Artigo SIC Notícias: https://sicnoticias.pt/mundo/2025-08-12-influencer-acusado-de-exploracao-de-menores-na-internet-caso-reacende-debate-sobre-adultizacao-no-brasil-fd58be78

CNPDPCJ: https://www.cnpdpcj.gov.pt/inicio

Childhood: https://www.childhood.org.br/quem-somos/

Instituto Liberta: https://liberta.org.br/

Aldeias Infantis SOS Brasil: https://www.aldeiasinfantis.org.br/

Eu Me Protejo: https://www.eumeprotejo.com/

Fundação Abrinq: https://www.fadc.org.br/taxonomy/term...


Francisco F. Neto 
Licenciatura em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 

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