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O coup d'état britânico?

 

As diversas ocorrências e fenómenos políticos da atualidade portuguesa acabam por ofuscar, inteiramente, as reconfigurações e transições políticas que emergem no seio da Europa. Deste modo, pode ter escapado à nossa atenção um comunicado do primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, que formalizou a proposta de reduzir a idade legal para votar em todas as eleições no Reino Unido, incluindo as eleições legislativas de 2029. Assim, o sufrágio passa a ser alargado às pessoas com  16 anos de idade, abandonando-se o critério antigo.

O argumento apresentado pelo chefe de governo britânico é que se os jovens “são suficientemente maduros para trabalhar, se pagam impostos, então também devem ter a oportunidade de decidir como querem que o dinheiro seja gasto e que rumo deve seguir o governo”. No fundo, subjacente a esta lógica está a ideia de que a representação política e o direito ao voto devem fundamentar-se não apenas em critérios formais e universais, mas também na capacidade cognitiva, conhecimento e maturidade individual, que habilitam os cidadãos a tomar decisões eleitorais informadas e responsáveis.

A questão central reside em determinar até que ponto os jovens em fase de adolescência possuem a maturidade necessária para tomar decisões informadas e conscientes no âmbito eleitoral. No contexto social, marcado por um crescente fenómeno de “anti-intelectualismo”, emerge um debate crucial entre os princípios da liberdade individual e a capacidade efetiva para o exercício do sufrágio.

Se é certo que existem autores, como Chan e Clayton (2006), que argumentam que o voto se conquista através do desenvolvimento de certo nível de conhecimento do sistema político e do debate público em voga, não se deve descurar que o direito ao voto, constituindo um direito civil e político, não deve ser capturado pela tirania do mérito. O entendimento moral de Chain e Clayton (2006), sendo baseado em conhecimento e interesse pelo mundo da política, desconsidera que o voto deve assentar na autonomia, levando a uma forma meritocrática do sufrágio - uma espécie de sufrágio censitário comprado com informação.

Ainda que seja pertinente pensar a escassez de interesse dos jovens na política, bem como as suas implicações na saúde da democracia, esta não deve servir de justificação para que se limite o acesso a este direito fundamental àqueles que trabalham, “descontam ao final do mês” e querem transmitir os seus pareceres face ao rumo do seu país.

Entenda-se a seguinte máxima: nenhum jovem desperta paixão por uma matéria da qual é sucessivamente excluído. O anti-intelectualismo,o desinteresse pela política e o individualismo são consequências do fraco incentivo ao envolvimento e ao contacto com a governabilidade e com a realidade social. No fundo, a diminuição da idade para votar - enquanto mecanismo de inclusão democrática - deve ser acompanhada da formação cívica e da literacia não só política mas também económica, de modo a garantir a participação informada e responsável. Este é o patamar ao qual o Reino Unido (como é o caso de Portugal) ainda não foi capaz de ascender, possivelmente.

Citando José Saramago, cuja reflexão foi evocada no mais recente debate do Estado da Nação, “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”. Esta lição convida-nos a reconhecer que, pela boa saúde da democracia, não basta exercer o direito de voto como um mero ato de responsabilidade cívica. Talvez resida ainda nos jovens uma lacuna de memória histórica, essencial para compreender as consequências das escolhas políticas do passado.

Sem essa memória, o ato de votar corre o risco de se tornar desprovido de profundidade crítica — e, como Saramago sugeriria, sem memória não existimos plenamente enquanto cidadãos e cidadãs.


Luís Sousa
Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais, Sciences Po Bordeaux 

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